domingo, 22 de fevereiro de 2015




Em outubro de 1988, o roqueiro baiano e fundador da banda Camisa de Vênus, Marcelo Nova, convidou o amigo Raul Seixas para voltar aos palcos depois de cinco anos de hiato. Raul andava mal das pernas, com a saúde debilitada pelo abuso do álcool, e sua carreira havia sido colocada no ostracismo. "Marceleza, será que eu estou em forma?", perguntou o maluco beleza a Nova. "Quem é rei não perde a majestade, Raulzito", devolveu o pupilo, que no ano que se seguiu embarcou com Raul em uma turnê pelo país que só se encerrou em 21 de agosto de 1989, dia da morte do ídolo e antevéspera do lançamento do primeiro e único disco em parceria da dupla.

Por ocasião do lançamento de "Raul - O Início, o Fim e o Meio", documentário sobre o cantor que estreia nesta semana nos cinemas brasileiros, o UOL convidou Nova para dividir essa e outras memórias de sua relação com Raulzito. Confira a seguir o depoimento exclusivo:


"A primeira vez que vi Raul Seixas foi em Salvador, no início dos anos 60, no Instituto de Reabilitação da Criança Defeituosa, entidade idealizada e dirigida pelo Dr. Fernando Nova, meu pai, que no final de cada ano promovia uma festinha para crianças portadoras de poliomielite.

Lembro que numa delas, entre apresentações de palhaços e mágicos, repentinamente surgiram dois adolescentes. O primeiro trazia uma vitrola portátil numa das mãos e ainda empurrava um carrinho de bebê, no qual estava o outro garoto vestido de nenê, com mamadeira, chupeta e demais acessórios. O que estava em pé liga a vitrola, põe o disco "O Boogie do Bebê" e começa a fazer uma dublagem embalada por passos de rock n' roll e requebros "elvinianos".

Os Panteras rosnavam e rugiam tanto que, no final do show, dezenas de garotas disputavam o privilégio de uma aproximação, desejando e ao mesmo tempo temendo ser mordidas. E eu voltava para a casa andando, com o coração acelerado, lembrando de cada momento e alegre por constatar que havia algo mais na Bahia além das fitinhas do Bonfim, acarajés e abarás
Houve subitamente um breque musical e o "bebê" se ergue no carrinho, joga a chupeta no chão e balbucia qualquer coisa. O outro dá-lhe uma bofetada e segue dançando para a gargalhada geral de quem, assim como eu, assistia atentamente à performance. O que estava vestido de bebê chamava-se Waldir Serrão. O frenético dançarino de topete atendia pelo nome de Raul Seixas. Eram os sócios-fundadores do "Elvis Rock Clube" e tinham uns 16 ou 17 anos.

Ainda não sabia que Raul morava na Graça, o mesmo bairro que eu [em Salvador]. E foi lá mesmo, na Graça, que alguns anos depois aconteceu a FIT (Feira de Indústria e Tecnologia), onde vários stands anunciavam, promoviam e vendiam as novas "maravilhas": televisores, liquidificadores e fogões tinham as suas virtudes enaltecidas por belas garotas de minissaia, sentadas em convidativas poltronas e exibindo coxas que levavam garotos como eu ao êxtase.

Perto do final do expediente, porém, elas sempre terminavam saindo com alguém mais velho, o que, se por um lado frustrava, por outro era o sinal de que iria começar o musical de encerramento das atividades da feira com a melhor banda de rock n' roll: Raulzito e Os Panteras.

Foi através deles que obtive meu primeiro contato imediato com o rock n' roll. Tinha já compactos e LPs de Little Richard, Elvis, Beatles e Stones, mas jamais havia visto nada disso ao vivo. Raulzito, vestido com um casaco de couro, tremia, dançava e se jogava no chão, provocando estranhamento em boa parte da plateia, habituada a performances mais corriqueiras. "Há muito tempo atrás, na velha Bahia, eu imitava Little Richard e me contorcia, e as pessoas se afastavam pensando que eu 'tava tendo um ataque de epilepsia'", diria ele em "Rock N' Roll", música que fizemos juntos em 1989.

Os Panteras rosnavam e rugiam tanto que, no final do show, dezenas de garotas disputavam o privilégio de uma aproximação, desejando e ao mesmo tempo temendo ser mordidas. E eu voltava para a casa andando, com o coração acelerado, lembrando de cada momento e alegre por constatar que havia algo mais na Bahia além das fitinhas do Bonfim, acarajés e abarás.

De Raulzito a Raul, o porta-voz de domésticas, profissionais liberais e intelectuais

Alguns anos mais tarde, Raul se mudou para o Rio de Janeiro e eu só voltaria a vê-lo pela TV, no Festival Internacional da Canção, em 72, cantando "Let Me Sing, Let Me Sing". E foi logo depois, através de discos como "Krig Ha Bandolo", "Gita", e "Novo Aeon "que ele deixaria de ser Raulzito, o cantor de rock n' roll para tornar-se Raul Seixas, o compositor que imprimiu altas doses de pertinência, mordacidade, sarcasmo, reflexão e inteligência no texto da música brasileira.

Sozinho, ou em parceria com Paulo Coelho, escrevia para um público heterogêneo (empregadas domésticas, profissionais liberais e intelectuais incluídos). E, como um caso único, fazia-se não só compreender, mas também o mais importante, dava a chance ao ouvinte de compartilhar e se identificar com o que era dito. Não era ingênuo como o rock que o antecedeu nem tão pouco partilhava a pseudo-poesia de lugares-comuns (com raras exceções) da MPB da época.

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